segunda-feira, 29 de março de 2010

Ausência

       Já faz algum tempo que deu as costas e caminhou após desejar apenas boa noite. O cheiro e o calor do corpo se dissiparam e, desde então, imperou apenas um silêncio retumbante dentro destas paredes. Os olhos já não se encontraram mais e as palavras, que compunham a poética de uma conversa vazia, se isolaram em memórias. Instaura-se, agora, o jogo da presença/ausência tão percebido por uns pelo seu tom pastel, porém posto de lado por outros, que o ignoram por sua aparente palidez. Entretanto, nesse caso específico, o jogo pinta-se com riscas claras, próximas a um cinza, que se misturam a um fundo cor de vinho, permitindo uma baça embriaguez visual, reflexo, talvez, de um estado de espírito.
      Mas de qualquer forma, já faz algum tempo que deu as costas e caminhou após desejar apenas boa noite. Permaneço estático como aguardando a sua volta, ou quem sabe um ímpeto que propicie a minha ida. Para onde pouco é necessário saber, muito menos faria diferença. Mas o que importa, nesse momento, é o que se criou com essa ausência que agora se personifica em meu corpo: a solidão que se faz presente e que conforta exatamente pelo seu vazio. Soa contraditório, mas é real. O que ausencia, provoca, ao mesmo tempo, uma presença. Um desejo de boa noite, o cheiro, o calor do corpo. O silêncio, a solidão. Os primeiros se foram, os segundos chegaram.
     Já faz algum tempo que deu as costas e caminhou após desejar apenas boa noite. Terminarei  apenas de pintar esse quadro de riscas quase cinzas pintadas em um fundo vinho e que me deixam com essa esfumaçada embriaguez visual. Feito isso, finalmente terei a boa noite que me foi desejada.

quarta-feira, 17 de março de 2010

Instante

Boa noite, me disse em sua voz suave, sem, contudo, deixar de indicar que estava ofegoso.
Nada pude fazer senão dizer a mesma coisa: Boa noite...
Depois tomou o caminho retilíneo rumo a sua casa, deixando atrás de si apenas o calor de seus passos por aquela calçada. Eu? Eu fiquei apenas cada vez mais afastado, observando-o atravessar pela porta e, aos poucos, vendo sua figura diminuir de tamanho conforme seus passos iam sendo trocados.
Meditei por um curto espaço de tempo toda aquela situação. Dois homens a dançar. Um cigarro aceso. Um quero-quero lá fora - e toda essa imagem não sai, agora, de minha cabeça. Eu ri, zombei da vida naquele instante. Mas devo dizer que foi tão somente naquele instante. Tudo ficou um silêncio oco logo após a sua partida. Ainda consigo sentir o seu calor em minha sala e, de alguma forma, me sinto acalentado por ele. "Você bem sabe como são as relações humanas. Uma breve conversa pode salvar uma vida", acho que foi isso que me disseram uma vez. Porém hoje não foi apenas uma curta conversa. Aliás, pouco conversamos, mas dançamos e fomos felizes por esse  sutil período.
Devo dizer que a sua presença, de fato, me embriaga e o oposto muito me diz. Foi o que pude perceber essa noite. Saiba que amanhã te procurarei novamente, nos mesmos lugares: em minha casa, em bares, em minha cabeça... e, quem sabe, teremos a chance de sermos felizes de novo, ainda que de novo por um breve espaço de tempo.

domingo, 14 de março de 2010

Querência

Acende o cigarro como se fosse um ritual.
Segura o isqueiro com a mão direita. O cigarro com a esquerda. Coloca em sua boca, saboreando qual doce. Primeira tentativa, o isqueiro não acende. Segunda, uma leve respiração vinda do nariz apaga a chama. Terceira, o brilho na ponta do cigarro e a fumaça em direção ao teto desenhando arabescos de traços sutis.
Uma tragada e o corpo se acalma. O olhar distante atenta para a janela. Observa no descampado em frente um quero-quero a dançar para proteger sua ninhada. Um sorriso no canto de seus lábios parece ironizar a cena que seus olhos vê. Entende que de seus olhos ao ninho há uma linha imaginária e que nas suas extremidades dois pontos que se opõem em um mesmo signo: a vida.
Outra tragada. Fecha os olhos. Um arrepio salpica em suas costas o caminho de sua coluna. O grito do quero-quero parece dizer algo. Um simples pio para ouvidos desprezíveis. E o cigarro aos poucos queima, criando obscuras formas de fumaça no ar. Ao longo da noite mais nenhuma tragada. Junto a isso, somente o olhar atento para o ninho e a percepção voltada para o desejo incessante de querer. Mas o quê, apenas um deles sabe.

terça-feira, 9 de março de 2010

Pela embriaguez

Sinto algo por aquele homem sentado
Não fala
Não anda
Não dorme
Mira, da janela de seu quarto, um espaço em branco
Que preenche sua alma cujo oco do próprio corpo percebe o vazio
Parece respirar pelos olhos
O corpo não mexe
O peito não arfa
Mas apenas seus olhos
Se mexem em direção qualquer
Como se escrevessem com movimentos rápidos da órbita ocular uma poesia
Sem rimas e de métrica errante
Sinto algo por aquele homem
Uma inveja por sua condição
Pela sua maneira de ver
Intocada por qualquer senso de real que impossibilitasse de enxergar

A folha

Eu vejo em minha frente uma folha de papel em branco. Intocada, pura, vestal. Ao meu lado, uma garrafa de vinho cheia: rubra, doce, barata. Há muito tempo que espero ter em minhas mãos uma folha assim, sem que a imundície da palavra cotidiana viesse entupir a alva tessitura desse papel santo com seus torpes significados. Eu consigo enxergar além das linhas ocultas dessa folha em branco. Sinto vontade de jogar milhões de palavras dentro dela, tentar redescobrir seus significados, criar novas, mas desde que ninguém lesse o que ficou escrito. Se isso acontecesse, tentariam entender. E quando entendessem - ou pensassem entender - ela seria nada além de arrotos de um poeta que, em sua embriaguez, compreendeu a vasta lucidez das palavras.
Essa taça de vinho pela metade.
Traçar rimas errantes. Parece bom. Confortável. Mas a folha em branco em minha frente, que já me irrita por sua palidez indesejada. O que me diz com sua claridade? Basta-lhe no mundo a sua própria altivez. Queria desvirginar-lhe com minha caneta impura que teima em se esfregar em seu corpo, manchando-lhe com esse sangue que é nosso, resultado de nossa cópula talvez por você indesejada, mas pela qual eu espero há longos anos, e que já não consigo esperar mais para que se consume.
E essa taça de vinho agora vazia, sorvida em um único gole e a folha agora manchada em tons vermelhos.