terça-feira, 9 de março de 2010

A folha

Eu vejo em minha frente uma folha de papel em branco. Intocada, pura, vestal. Ao meu lado, uma garrafa de vinho cheia: rubra, doce, barata. Há muito tempo que espero ter em minhas mãos uma folha assim, sem que a imundície da palavra cotidiana viesse entupir a alva tessitura desse papel santo com seus torpes significados. Eu consigo enxergar além das linhas ocultas dessa folha em branco. Sinto vontade de jogar milhões de palavras dentro dela, tentar redescobrir seus significados, criar novas, mas desde que ninguém lesse o que ficou escrito. Se isso acontecesse, tentariam entender. E quando entendessem - ou pensassem entender - ela seria nada além de arrotos de um poeta que, em sua embriaguez, compreendeu a vasta lucidez das palavras.
Essa taça de vinho pela metade.
Traçar rimas errantes. Parece bom. Confortável. Mas a folha em branco em minha frente, que já me irrita por sua palidez indesejada. O que me diz com sua claridade? Basta-lhe no mundo a sua própria altivez. Queria desvirginar-lhe com minha caneta impura que teima em se esfregar em seu corpo, manchando-lhe com esse sangue que é nosso, resultado de nossa cópula talvez por você indesejada, mas pela qual eu espero há longos anos, e que já não consigo esperar mais para que se consume.
E essa taça de vinho agora vazia, sorvida em um único gole e a folha agora manchada em tons vermelhos.

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